Este romance da vida real é contado como uma sucessão de crônicas, todas conectadas e narrando a mesma manhã, a manhã do dia 1 de janeiro na Cidade Sorriso. O que houve ali para que se pudesse fazer um livro a respeito? Muito pouco. Mas mesmo o pouco aos olhos de cronistas pode revelar em si uma quantidade arrebatadora de vida, reflexões, poesia e coisas um tanto peculiares. "E quanto a Deus àquela hora? Ajudar-nos-ia todos por termos madrugado na principal manhã do ano? Compensaria nossa boa vontade de termos acordado tão cedo, e ainda resistirmos à espera dos caprichosos? Ah, a ajuda de Deus dispensávamos. Pois Deus não ajuda, Deus é quem cedo madruga. Se Ele tem qualquer horário para despertar, é claro que é muito cedo, muito antes de todo mundo. Afinal, tem que aquecer o mundo, abrir o dia, trazer o sol, vir com as boas novas para acordar suas crianças. Bem era o que fazíamos. Bem era o ofício dos madrugadores. De pé tão cedo, encontram sempre um mundo sem dono e sem posses, e o dominam. Eis a ajuda que dão a si mesmos, a chance de ditar as regras, de anunciar o ano, de legitimar as governanças. Mais divino e poderoso que isso, só mesmo se não dormir. É assim que se pode encontrar Deus, procurando-o na ala dos acometidos por insônia. Se não lá, estava ali, conosco, na madrugada do ano novo." "Antes que pudesse me colocar de vez dentro do Teatro, não pude evitar que minha vista fosse arrebatada por aquela pitoresca figura de quatro patas e pelo branco, branco como eram meus sapatos e minha calça: um cavalo de ano novo! Os cascos de trás na rua, os da frente na calçada, sobre o dorso do animal, um outro, este humano, mas também vestindo branco: no chapéu. E que chapéu! Suas abas dariam sombra a todas as pessoas que ali passavam para pegar a escadaria que dava à entrada principal do Teatro." "O teor aleatório da vida é o que muitas vezes nos mantém alertas. Se tudo fosse muito harmônico, quase etéreo, a realidade estaria próxima de ser como os sonhos. Não que os sonhos não guardem seus absurdos; o segredo deles é não nos despertar a estranheza, fazer-nos crer no surreal. Assim seguem a maioria dos sonhos sem que despertem em nós algo capaz de dizer de si mesmo desperto. A vida acordada livra-se disso justamente pela capacidade do espanto, e quem vem encontrar o espanto na maioria dos casos é a aleatoriedade." "A próxima cena foi uma que teria muito a ensinar aos estudantes de escrita criativa e literária. Vimos surgir um homem notório, de vestes formais e